sábado, 20 de maio de 2017

Alguma poesia antes de dormir

Soa a palavra fresca
o mel do verbo
a letra linda.

É noite, hora dos espíritos,
noite constelada
dentro de minhas sinapses.

É a hora! É a hora!
Desfraldam brilhos,
corrompem nuvens,
estancam o sangue...
latejam vivas
as palavras.

Correm furtivas, absortas
na tentativa de fugir...
cerco o enxame
e sinto cada ferroada,
cada estímulo pontual
na pele, nos olhos, nos dedos.

Assim vem o momento poético,
uma construção de movimentos
e choques, deslizes e encaixes.

Move a grande roda e costura o tempo
na colcha de retalhos que é a vida...
mas que é a vida comparada à noite?
Que é a arte? É sua hora?

São indômitas
as damas loucas,
as bacantes
em sua fúria musical.

É Orfeu redivivo
cercado de glórias,
prestes a se tornar
uma religião.

Passa a hora, pássaro
canoro e fulgurante,
vôo vermelho
rumo à madrugada.

Dedos percorrem
os gatilhos de uma lira.

Há um signo no céu,
e com ele, venceremos.
O vício do mar
é se desfraldar.

Dentro de minha cabeça
brilha o impronunciável
e primitivo
nome de Deus.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Resende numa noite de maio

A cidade intumesce,
cresce,
ganha e perde espaços.

Fachadas, escadas,
terraços, caminhos
e confusões.

A cidade vai me engolindo,
enquanto durmo.

Sorrisos novos, novos passos,
faróis e pneus, buzinas,
ferros, aços.

À noite, vai se acendendo,
vai se incendiando,
se corroendo.

O céu estrelado testemunha
suas cinzas, seus esquecimentos
e um cachorro infinito
uiva pra lua.

Calçadas vazias,
janelas escuras,
café frio esquecido
sobre uma mesa de centro.

Passeiam, laboriosas,
as baratas,
lontras e capivaras
atravessam o rio,
ratos roem o luar.

Cidade, criança órfã,
deixada aos cuidados
de um céu
inacabado.

Suas pontes impedem
que se parta ao meio.
Nas lâmpadas dos postes,
mariposas sussurram
segredos e pecados.

Chora a cidade,
engolindo a todos.
Vomitará cada um de nós,
pela manhã.

Chora, até que dorme.
Cansada.
Seus sonhos
têm cheiro
de dama-da-noite.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Tocaia


Sem me olhar nos olhos
tu te esquivas
e me levas a ajustar a mira.

Sempre é pouco tempo,
sempre há pressa.
Acendo um cigarro
e escorres até o banheiro.

Voltas vestida, penteada,
como se nada houvesse acontecido.

Pedes um cigarro, o fumas,
e apenas por um instante,
teus olhos param nos meus.

"Para de ficar me olhando"
tu dizes.

Meus olhos são precisos e não tremem.
Os teus me fazem apertar o gatilho.

O tiro sempre sai certo,
mas és à prova de balas.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Elogio da palavra


Palavra
suave e doce,
tensa e vulgar,
signo humano
cruel e necessário.
Quero cruzar seus planaltos
em vôos rasantes,
cortar sua neblina fria
e ir além.
Quero mergulhar em suas furnas,
suas locas, suas ravinas,
quero seu néctar
e sua sombra,
seu toque
e seu cheiro.
Palavra que habita o pranto,
palavra que guia a luxúria.
Palavra que mata a sede
e se introduz no coração
das mulheres e dos homens.
Seu universo imenso
e equidistante,
sua penumbra fina,
seu cálice de sons.
Amo a palavra, amo seu travo
e seu rabisco. Amo-a constante!
Descubro em você
um amor que não vai morrer.
Leve minha alma, palavra,
leve-me para sempre,
deixe-me dormir em seus braços,
deixe-me ter contigo a minha prole,
o meu legado.
Deixe-me sem palavras,
palavra querida,
palavra amada.

Um canto de consagração



Na palavra tenho meu refúgio,
minha casa lotada
de vivos e mortos.

Geralmente não festejo
o aterrissar de um poema -
antes, sinto como se pousasse
uma borboleta em seu último vôo.
Pego-a, delicadamente,
e a alfineto a um quadro.

Noutras vezes, o poema vem
como uma tempestade,
ou o ataque de um tigre.
Desses, quase sempre,
saio machucado.

Há poemas de amor,
há também sobre o tempo,
essas duas grandezas
irrefreáveis.

É na palavra que me sinto seguro,
mesmo com toda volatilidade,
mesmo com tantos caminhos obscuros.

Uso a palavra
pra me salvar da morte
e da vida.
O poema não me deixa afundar
ou me leva, de forma misteriosa,
ao que me é profundo.

Às portas do Inferno,
me espera um poeta,
com uma tocha
acesa na mão.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

O rio do amanhã

Sou um rio que nasce amanhã.
A roda da vida em seu claustro de tempo, ininterrupta,
ancorada e livre,
corre através de minhas águas
e desemboca no por-do-sol.

Flechas e ventos me trespassam.
Líquido, trago sedimentos
e fertilidade
às margens do mundo,
com seus papiros
e crocodilos.

Sou um lapso, uma dobra,
um momento enjeitado.
Sou uma curva que nunca se fecha,
um instante brilhante e fugaz.

Carrego comigo um passado
pobre de concretudes,
mas de essência sólida,
como um projétil carrega consigo
as marcas do cano
por onde foi disparado.

Um acúmulo de fotos,
um novelo de paixões
em linhas arrebentadas.
Eu insisto dentro
de meu próprio contexto
pra conseguir o alívio,
minha apoteose de sábados,
meu delírio floral
aos domingos.

Não me deixo cair em tentações,
mas me livro do mal e das pestes,
que juntam homens e bichos
num mesmo lamaçal faminto.

Cavo pela terra meu caminho irrestrito,
meu mundo de profundidades
e corredeiras.
Há ingás em minhas margens
e eles são muito doces.

Me conhecer é questão
de mergulhos, banhos,
e ninfas brincam em meu leito
jogando água umas nas outras.

Um belo dia só existirá o passado
e o futuro desaparecerá
em uma fenda na terra.

Tragam-me suas virgens,
seus mortos,
seus primogênitos.
A todos engolirei
e nunca mais serão vistos
por ninguém.

Tragam-me músicas
e encham seus copos comigo.
Os rios têm uma regra
de hospitalidade a seguir:
a de nunca expulsar ninguém
que já esteja dentro.

Os únicos caminhos são a foz
e o fundo.

Me amar é um tipo de batismo

quinta-feira, 23 de março de 2017

Olhos de Capitu

Teus olhos, dioneias,
piscavam
e me engoliam vivo.

terça-feira, 21 de março de 2017

Sol poente de outono,
que já nasceu posto,
que se espalha,
feito serragem,
por frestas e fendas,
filtrado
por vidros e grades.

Sol que é mais luz
que calor.
Sol que venta
e traz notícias
dos antepassados
mortos.

Sol que permite
que se olhe pra ele.
Deixa o dia mais azul
e a água mais fria.

Sol que estava
no ponto mais alto do céu,
quando nasci.

Sol que vive, pulsa
e assombra,
que parece menor que é.

Sol dançarino
em evoluções perfeitas,
exortado por poucas nuvens.
Sol que não me fere- e me alivia,
seus bons raios me alcançam
e me jogam além
de qualquer sombra
no coração.

Amo-te, sol. Amo-te, vento.
Enxergo-vos como a dois
bailarinos.
E também dança
minha alma.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Esfinge


À sombra de teu rosto,
o universo se abria,
numa flor translúcida
de infinitas pétalas.

Tudo era penumbra,
quando erguias o rosto
e afrontavas as chamas,
pequenas e tremeluzentes.

Teu rosto era um martelo suave,
um machado leve, uma espada,
e cortavas a luz
e o silêncio.

Não falavas, toda eloquência
vinha de teu rosto,
de teus olhos atrevidos,
de teu queixo abusado.

Eras a figura de proa do abismo.
Cataclismo, intempérie,
revoada em busca da primavera,
lançando sombras sobre o outono.

Tu eras a nudez do desejo,
eras a fria fronte de uma estátua
a que o tempo não escarvou,
eras um pavão fotografado.

E eu roçava tua pele com os olhos,
e, com os dedos, te adivinhava,
e alisava teus cabelos,
como quem desnuda a via-láctea.