sexta-feira, 21 de abril de 2017

Elogio da palavra


Palavra
suave e doce,
tensa e vulgar,
signo humano
cruel e necessário.
Quero cruzar seus planaltos
em vôos rasantes,
cortar sua neblina fria
e ir além.
Quero mergulhar em suas furnas,
suas locas, suas ravinas,
quero seu néctar
e sua sombra,
seu toque
e seu cheiro.
Palavra que habita o pranto,
palavra que guia a luxúria.
Palavra que mata a sede
e se introduz no coração
das mulheres e dos homens.
Seu universo imenso
e equidistante,
sua penumbra fina,
seu cálice de sons.
Amo a palavra, amo seu travo
e seu rabisco. Amo-a constante!
Descubro em você
um amor que não vai morrer.
Leve minha alma, palavra,
leve-me para sempre,
deixe-me dormir em seus braços,
deixe-me ter contigo a minha prole,
o meu legado.
Deixe-me sem palavras,
palavra querida,
palavra amada.

Um canto de consagração



Na palavra tenho meu refúgio,
minha casa lotada
de vivos e mortos.

Geralmente não festejo
o aterrissar de um poema -
antes, sinto como se pousasse
uma borboleta em seu último vôo.
Pego-a, delicadamente,
e a alfineto a um quadro.

Noutras vezes, o poema vem
como uma tempestade,
ou o ataque de um tigre.
Desses, quase sempre,
saio machucado.

Há poemas de amor,
há também sobre o tempo,
essas duas grandezas
irrefreáveis.

É na palavra que me sinto seguro,
mesmo com toda volatilidade,
mesmo com tantos caminhos obscuros.

Uso a palavra
pra me salvar da morte
e da vida.
O poema não me deixa afundar
ou me leva, de forma misteriosa,
ao que me é profundo.

Às portas do Inferno,
me espera um poeta,
com uma tocha
acesa na mão.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

O rio do amanhã

Sou um rio que nasce amanhã.
A roda da vida em seu claustro de tempo, ininterrupta,
ancorada e livre,
corre através de minhas águas
e desemboca no por-do-sol.

Flechas e ventos me trespassam.
Líquido, trago sedimentos
e fertilidade
às margens do mundo,
com seus papiros
e crocodilos.

Sou um lapso, uma dobra,
um momento enjeitado.
Sou uma curva que nunca se fecha,
um instante brilhante e fugaz.

Carrego comigo um passado
pobre de concretudes,
mas de essência sólida,
como um projétil carrega consigo
as marcas do cano
por onde foi disparado.

Um acúmulo de fotos,
um novelo de paixões
em linhas arrebentadas.
Eu insisto dentro
de meu próprio contexto
pra conseguir o alívio,
minha apoteose de sábados,
meu delírio floral
aos domingos.

Não me deixo cair em tentações,
mas me livro do mal e das pestes,
que juntam homens e bichos
num mesmo lamaçal faminto.

Cavo pela terra meu caminho irrestrito,
meu mundo de profundidades
e corredeiras.
Há ingás em minhas margens
e eles são muito doces.

Me conhecer é questão
de mergulhos, banhos,
e ninfas brincam em meu leito
jogando água umas nas outras.

Um belo dia só existirá o passado
e o futuro desaparecerá
em uma fenda na terra.

Tragam-me suas virgens,
seus mortos,
seus primogênitos.
A todos engolirei
e nunca mais serão vistos
por ninguém.

Tragam-me músicas
e encham seus copos comigo.
Os rios têm uma regra
de hospitalidade a seguir:
a de nunca expulsar ninguém
que já esteja dentro.

Os únicos caminhos são a foz
e o fundo.

Me amar é um tipo de batismo