quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cio repentino de outono



Se me queres feliz,
realmente feliz,
traz-me figos
em calda, secos
ou na carne da fruta.

Traz
a minha boca
a polpa macia e melada,
aos dentes, o gostoso estalido
das sementes.

Traz-me figos,
se me queres feliz.
Se me queres contente,
ensopa meus lábios
de figos.

Traz-me figos no corpo-
joga-os ao chão e deita sobre eles,
convulsa, réptil, sibila,
esmaga-os entre os dedos,
aperta-os contra os peitos, entre as coxas,
enfia-te dos figos, enfia-os também na boca...
e traz-me-os.

Se me queres feliz,
impregna deles o sol. Traz
a manhã perfumada
da cica dos figos.

Se me queres,
feliz,
traz-me figos.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Escrever sobre o que escrevo
não é escrever o que escrevo.
É antes, não ter
o que escrever.

Eu escrevo hoje à míngua,
difícil,
ultrapassado,
atropelado no ofício.

A escrita se tira da vida,
e a vida, de onde se tira?
A vida se tira da escrita
e se acrescenta a fome, já aflita.

Escreve-o sem o vive-o,
horrível
desnível
Drenagem de tinta já velha,
Chove e desce pela calha
da casa que é só telha.

Centelha
fricção da pedra na pedra
calo no dedo da perda.
Perdido de si, o poeta
faz ponte entre as margens
sem rio.

Viver sobre o que escrevo
não é escrever sobre o que eu vivo.
Vivo... mas não vivo.
Respiro ar sem movimento,
virando as páginas
rápidas
brancas
da vida ausente no livro.