sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Entre dois pontos

http://www.youtube.com/watch?v=dOLyN7ppeh4&feature=related



Tudo indo. Nem bem nem mal, mas indo. Quando é assim, é quase uma modéstia de indo mal, mas no fim das contas, fica mesmo indo.
Estava (e está) tudo indo. Voltando pra casa, sexta-feira de muito trabalho, sentado num lugar de janela do ônibus. A mesma paisagem, sem movimento ou nuances. As mesmas paradas, umas velhas também voltando pra casa, riram risadas de bruxa, por algum motivo, lá nos lugares reservados da frente. Outra parada, entra bastante gente. Entra uma moça, senta-se ao meu lado. O último lugar vazio disponível. Nem bonita nem feia, quase modéstia de bonita. Cheiro neutro. Senta-se ao meu lado.
Apesar de as janelas mostrarem sempre a mesma coisa, sem movimento nem nuances, é onde meu olhar se concentra, nos trajetos. De noite, consigo ver um pouco do meu rosto, incorporado àquilo. Uma coisa e outra chamam atenção, às vezes. Algo no céu, mulheres bonitas, o rio e a serra na ponte, os flashes de conversa e os semblantes puídos da gente daqui. Mas, sutilmente, eu tentava captar a mulher, com visão periférica, mais inclinado ao interior do ônibus.
Ficamos um pouco encostados um no outro, eu e a moça. Um ponto no meu braço, outro na minha perna. Os braços, não há como desencostá-los, mas a perna poderia ser recuada. Não foi, a minha nem a dela. E tudo assim... o ônibus, as velhas, os outros passageiros, a paisagem mesma e sem nuances. A moça e eu, indo, colados por dois pontos sem reticências nem final. Quase (muito quase) modéstia de reticência, mais ainda, de travessão. Um calor trocado, sem alternativa, dois pontos de contato espontâneo, que o acaso imprimia no tudo que ia. Nenhuma vontade, nenhuma tensão.
Apenas aquela versão inédita de misericórdia, passando entre os tecidos da minha pele e de sua blusa, e de nossas calças. Uma pietá mútua, singela e osmótica, de que talvez ela também se tenha dado conta. Fomos indo, através da noite, atrelados ali, laquéticos, mas em frouxidão. Um carinho morno de poros amassados e pontas de nervos, fagulhando sinapses naquela escuridão que jamais nos abandona.
Emproei-me, para solicitar a parada, apertando o interruptor do acaso, deixando, naquele ponto, seu fio e sua meada, e seguir com o meu e a minha.
Ela girou no assento, abrindo caminho.

Obrigado.

Indo na direção da porta, olhei pra seu rosto. Baixo, concentrado nas mãos cruzadas sobre as pernas, agora bem juntas e centradas. Olhos cansados ou tristes. Era bonita.
Saltei.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Avoengo

Publicado originalmente (sob a forma de reply) em http://nightscale.wordpress.com/


Tive contato com minhas duas avós (com a materna mais que com a paterna – não sei se é regra, mas sempre há uma avó preterida, ou mais distante que a outra). Minha avó paterna tinha nome de ópera, mas não era tosca (poucos risos, por caridade). Escrevia poemas, fazia doces e dividia meu avô com umas 4 ou 5 mulheres da cidade (além de ter substituído a irmã, como esposa de meu avô, quando esta morreu). Nas últimas visitas, sempre me chamava ao quarto e me dava dinheiro ‘pra comprar balas, que Deus faça de você um homem de bem’.
Minha avó materna era o catiço: tinha nome de cocotte francesa, destratava os empregados e as visitas, mijava pernas abaixo, quando havia tempestades, mantinha um corte de cabelo hendrixiano, recebia entidades de Umbanda e me ensinou a gostar de tangos, seresta e quase todo tipo de comida gorda, mormente massas. Tenho uma saudade enorme dela, uma das poucas pessoas de minha família capaz de catarses imprevisíveis.
Eu me lembro de várias anedotas que ela protagonizara, mas a que me vem à mente, de imediato, ocorreu quando eu lhe perguntei, muito menino, o que eram hemorróidas. Ela, de perna cruzada, sentada na varanda do sítio, tragou lindamente seu Free (fumava com classe de cocotte francesa) e respondeu, olhando pro infinito:

Hemorróidas são varizes no cu.

No dia em que eu destruir minha cidade (derramando indutor de cio nos reservatórios e explodindo, sincronicamente, os postos de gasolina), eu tenho certeza de que me lembrarei dela.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Narciso

"...And the things she put faith in are ripples just waving her by..."

(Gentle Giant)




Olha para o relógio e é assaltado daquele preenchimento que vem com as iminências, por ver que os ponteiros puxam o centro, um pra cima, o outro pra baixo.
Já de chapéu, desce a estreita escadaria do jornal e entra no fim da tarde. Acende um cigarro, debaixo da marquise. Um sanduíche humano atravessa a rua rápido, e vem se abrigar da chuva a seu lado. Tem cara de peruano ou qualquer desses pós-pré-colombianos que se cansaram de tocar flauta.
A chuva de verão, sol e gotas doces, traz a ele lembranças da infância, passada entre brejos e estradas de saibro, no interior. As brincadeiras e os banhos de calha e os esporros da mãe, quando voltava pra casa. Mais uma vez, ele está na cidade em que nasceu, chutando água das poças do pátio da igreja nos amigos, correndo de bicicleta na chuva, pintando nas costas um jato de lama. A chuva não está tão forte e tudo à frente é um mosaico brilhante, glorioso e colorido de imagens vindas do céu. Chuva boa, de um céu bom, trazendo natureza a ele, rara e distante, nesses dias.
Põe-se a atravessar a rua, sentindo-se mais leve, mais sutil à medida em que as roupas se molham. Os bigodes e as sobrancelhas descem-lhe do rosto, tinta derramada, vai perdendo todos os pelos do corpo. A ponta do nariz pinga nos lábios, que escorrem pelo peito. Afluem para lá também os olhos, em lágrimas borradas e os dentes deslizam e gotejam, feito velas acesas. Os dedos se fundem num só curso, em cada uma das mãos, como enfiadas em mangas de suéter compridas demais.
Alcança o outro lado, mas não transpõe o meio-fio, represo. Estende-se, abrangente, e pés chapinham no que era, há pouco, a barriga. Deslizam, por ele e com ele, papéis de bala, guimbas de cigarro, sonhos de menino e nenhum barco de papel. Vertigem.
A tarde se despede em brilho, do alto do bueiro.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cio repentino de outono



Se me queres feliz,
realmente feliz,
traz-me figos
em calda, secos
ou na carne da fruta.

Traz
a minha boca
a polpa macia e melada,
aos dentes, o gostoso estalido
das sementes.

Traz-me figos,
se me queres feliz.
Se me queres contente,
ensopa meus lábios
de figos.

Traz-me figos no corpo-
joga-os ao chão e deita sobre eles,
convulsa, réptil, sibila,
esmaga-os entre os dedos,
aperta-os contra os peitos, entre as coxas,
enfia-te dos figos, enfia-os também na boca...
e traz-me-os.

Se me queres feliz,
impregna deles o sol. Traz
a manhã perfumada
da cica dos figos.

Se me queres,
feliz,
traz-me figos.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Escrever sobre o que escrevo
não é escrever o que escrevo.
É antes, não ter
o que escrever.

Eu escrevo hoje à míngua,
difícil,
ultrapassado,
atropelado no ofício.

A escrita se tira da vida,
e a vida, de onde se tira?
A vida se tira da escrita
e se acrescenta a fome, já aflita.

Escreve-o sem o vive-o,
horrível
desnível
Drenagem de tinta já velha,
Chove e desce pela calha
da casa que é só telha.

Centelha
fricção da pedra na pedra
calo no dedo da perda.
Perdido de si, o poeta
faz ponte entre as margens
sem rio.

Viver sobre o que escrevo
não é escrever sobre o que eu vivo.
Vivo... mas não vivo.
Respiro ar sem movimento,
virando as páginas
rápidas
brancas
da vida ausente no livro.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Barcarola náufraga


Lua
descendo
reflete

Miroir na praia.


Pedra
onde ondas
defletem

Meu roer, na praia.


Foz:
um rio
me repete:

Vou morrer na praia.