segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Ambientes


Acordou e percebeu que não houvera dormido. Calmamente, sentou-se na cama e ficou a olhar os próprios pés. Muitos mistérios já haviam sido tornados em banalidades e coisas mesquinhas e nada do que precisava, àquela altura da vida, era acordar sem ter dormido.
Ainda assim, ainda calmo, bocejou, coçou as costas (bom jeito de começar o dia é coçar as costas, ouvir o croch croch das unhas importunando a pele das costas, saber que tem unhas e que consegue dosar sua força para que elas aplaquem a sede de atenção da pele, deixando não mais que um vermelho provisório. Saber também que tem costas e que essa parte do corpo lhe é fundamental como todas as outras, mas que coça, para dar a ele a sensação de que o tempo pára para ele se tocar).
Mas não houvera dormido e, assim que as costas se calaram e as unhas voltaram ao esquecimento, ele se lembrou. Não houvera dormido.Não parecia justo a ele ter sido involuntariamente privado do repouso do sono, do banho de escuridão, desapego e inexistência que o sono significa para cada um.
Foi ao banheiro, olhou-se no espelho e não tinha olheiras nem os olhos estavam vermelhos. O alto da cabeça tinha uns cabelos rebeldes, mas a cabeça sempre fora sua parte mais tumultuada, mal partilhada pelas idéias colonialistas e sempre ambiente de conflitos, genocídios e minas terrestres disfarçadas de brinquedos e borboletas.Pensou um pouco na merda, em como as coisas eram merda. Imensa merda. Bochechou a água e a espuma com que escovou os dentes, conferiu a assimetria antisseptizada da arcada e a cor carnosa das gengivas, onde os dentes mordiam famintos. "Primeiro nasceram os dentes, depois nasceu o homem". Preferia ter esporrado na cueca a ter formulado uma frase dessas, mas foi o que veio ao olhar o reflexo da boca aberta.
Ainda de pijama, foi atrás de cigarros e café, encontrando a empregada na cozinha.

"Acordou agora?"

Encheu a xícara e saiu para o pátio, onde o sol e as árvores pareciam posar para algum impressionista.
Não sabia a resposta.

...

Nas árvores, os pardais. Gente matinal, urbana e onipresente que brota do cimento. Onde há cimento há pardais. Assim como os pombos, são os primeiros sinais de que o concreto está vindo. Vêm destruir os ciclos e os equilíbrios, anunciando às normalidades dos lugares o Apocalipse. Trombetazinhas sujas e finórias da aniquilação da pureza.
O primeiro cigarro do dia me tonteia e o primeiro café me desfibrila. Amanheço pegando no tranco, entre entropias químicas. Árvores e sol. E eu, acordado do não-sono. Nessun dorma, que assim seja.
Sou o primeiro homem do mundo a acordar assim e tenho a sensação de que um grande dom me foi dado.
Ilustração: Red Eye of Mars, Susanne Iles

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Havia paz, na época dos morros






Menino,
grilo percebia o azul
fora do verde,

a cada salto.


Era assim que sentia
a paz:

via-se o dentro
do lado de fora;

fôlego hiato do chão
ao chão.

A paz existia nele
e seu mundo era a vastidão
do vento no alto dos morros.




sábado, 18 de agosto de 2007

Centro cardeal




Apesar do dia ensolarado lá fora, o blues que toca aqui nas caixas está mais pra mim, assim como o sol lá fora está pros lagartos.

Crossroads, numa versão acústica e instrumental que um amigo gravou. Está em Ré e em Ré acompanho com a gaita algumas frases. Crossroads. As encruzilhadas, aneurismas na estrada, em que o sangue pára seu fluir e se pergunta: por qual caminho?

Nessas horas de encruza, de cessar de passos para não descansar, fico pregado à cruz, relógio parado aguardando corda, corda pendente aguardando pescoço, pescoço cancelado aguardando o grito...


Diabo! Vem buscar minha alma!


Mas o Diabo não existe pra mim. A coisa mais perto dele que concebo sou eu em incorretas horas, em horas pregadas às tábuas sem salvação e sem mandamentos.Sem andamento, semana aumenta o cansaço e o puir das fibras, prenunciando o arrebentar da corda e o âmbar cristalizado das palavras a catapultar-se da boca.Seja qual for o caminho, seja qual for o destino que meus pés de elefante velho escolherem, haverá fossos, muros e sítio, testes ao peso do corpo, ao poder das patas, à pureza e acuidade dos marfins.

Haverá o derradeiro blues, o blues do patíbulo, calvária melodia que acompanha o fel manjar do que está suspenso.



O Diabo, se existisse, estaria agora vestido em branca túnica.
Gravura de Escher: Crossroads

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Moto-perpétuo




Em mim os cavalos não descansam.