quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Hiato

Hoje, hiato dinâmico, bolsa intravenosa de vazio, jangado no próprio sangue, bonito quando amanhece, flutuo. Tenho a beleza das ruínas venerandas e a sabedoria inútil da mudez de um bebê: se não choro, ninguém se lembra. Se não me dói, não choro. Dor e lembrança não riscam mais a fúria do céu ensolarado. Manhã na alma e descanso no corpo, guardião fatigado. Há, em mim, a marca, o desabrigo e o cansaço. Mas o silêncio me traz felicidade e norteio-me por não ter vontades.

Sorria, quando eu chegar, meu destino... para que eu saiba que cheguei.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Estudo para um beijo, de Magritte


Parece um baile de máscaras, mas sabemos quem somos. Melhor dizendo:
você sabe quem eu sou e eu sei quem você é. E só.
Mais que isso, é o que se constrói, no escuro.
"Eu vim torcendo pra te/não te encontrar"+"eu não sabia se era admiração ou (unff)" e o mundo freia, xinga e joga dois através do parabrisas. Two more for the road.
Coisa surda essa... coisa de cantos e sombras. Pode nem sequer falar,
essa coisa. Nem se quer falar.
Por onde anda você não sei. A pista de dança é enorme... e é muito
fácil se perder onde as coisas são coisas sem nome, sem face e sem
nomear. Silêncio de pausas em meio à dança, um pra lá, um pra cá, um
pra lá, um pra cá. Nós não sabemos dançar.
Seria mais fácil, mesmo sendo difícil... seria mais fácil, não fosse o
que é. Não fosse a coisa: meu cismar sombrio, clandestino, minha
dedicação porca à causa e total à consequência (minha incapacidade com
os canteiros de amor-perfeito... eles sempre secam logo depois que os
planto), a coisa certa na hora errada. Mundo descompassado da porra.
Falta de ver a escova passando pelos cabelos negros, pretos, pretos,
muito pretos... a imagem da mulher nua e seu violoncelo. Falta da boca
rindo dentro da minha boca rindo, falta de rir do destaque da voz, de
procurar os olhos, de procurar e achar os olhos, das perguntas que
precisam de reforço pra se tornarem perguntas completas, pra que eu
possa dar respostas inteiras.
Eu não devia dizer essas coisas. Eu nem posso dizê-las. Mas eu sei
quem você é e você sabe quem eu sou.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Mimese

Formigas
inúmeras
destrincham a lagarta.

Há um deus triste que se consola
cortando as asas
da borboleta.

Tráfego senescal

Procuro, pela casa, os teus cabelos.
(eles não mais me procuram)

Despeço-me das tuas sandálias
ao sair do quarto.

Descumpro rituais e hábitos-
só há ausência e morangos secos

sem fronhas

e sem lençóis.


republicação adaptada

Acalanto

Dorme em teu trono, pérola,
nácar de mistério e luz.

Deixa que o mundo passe,
indeciso, desgovernado.

Não te ameacem sondas
saqueadoras, turvos
mergulhadores.

Dorme.

Criança, aguarda
a mão cheia de infância
que a convidará a dançar,
despida de escafandros...

...dando corda à tua concha de música.


republicação

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Final alternativo

E eu, no meio daquilo, me sentei,
calmamente,
sem alarde.

Participei a todos que estava indo,
comi o último pão da cesta,
tomei o resto do café.

-Mas, assim,
sem mais,
sem menos?

Assim.

Levantei-me... sem reparar
em roupas, em cores,
cobri- me das minhas.

Eu era, à minha partida,
minha última pintura a óleo.

Reverso Íntimo

Tomo um fósforo, acendo meu cigarro.
Deixo saber a que venho,
faço pose, busco contraste.

No frio do detalhe,
o olho impera.
Afago a mão vil que me afaga.

Limites

a beira da mesa
o quarto dos fundos
terminais: ônibus-metrô-ônibus
o banco do carona
o cartão do banco
palavra escrita-discada
finais-de-semana
os dois pulmões
o céu na moldura
um filme sem vozes
um último trago
um último traço.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

À guisa de prefácio

Nos lábios, no encalço do escuro, o pendente tremor...
enforcou palavras como sinal de poder. Exibiu os troféus de sangue, mantendo o medo, mantendo distância segura.
Dali pra frente, guardaria no bolso direito a próxima bala, sentença sem volta, garantia de não.
Olhou para os dois lados e atravessou a rua. Um míssil passou a poucos centímetros de sua testa e caiu no chão, sem explosão. Riu. Abriu o zíper e mijou na bomba, fez fumaça, guardou a peça sem chacoalhar e não mais voltaria correndo pra casa, toda vez que coisa semelhante acontecesse.
Ateou fogo em tudo o que trouxesse voz a seu alívio e foi morar com primatas.