Acordou e percebeu que não houvera dormido. Calmamente, sentou-se na cama e ficou a olhar os próprios pés. Muitos mistérios já haviam sido tornados em banalidades e coisas mesquinhas e nada do que precisava, àquela altura da vida, era acordar sem ter dormido.
Ainda assim, ainda calmo, bocejou, coçou as costas (bom jeito de começar o dia é coçar as costas, ouvir o croch croch das unhas importunando a pele das costas, saber que tem unhas e que consegue dosar sua força para que elas aplaquem a sede de atenção da pele, deixando não mais que um vermelho provisório. Saber também que tem costas e que essa parte do corpo lhe é fundamental como todas as outras, mas que coça, para dar a ele a sensação de que o tempo pára para ele se tocar).
Mas não houvera dormido e, assim que as costas se calaram e as unhas voltaram ao esquecimento, ele se lembrou. Não houvera dormido.Não parecia justo a ele ter sido involuntariamente privado do repouso do sono, do banho de escuridão, desapego e inexistência que o sono significa para cada um.
Foi ao banheiro, olhou-se no espelho e não tinha olheiras nem os olhos estavam vermelhos. O alto da cabeça tinha uns cabelos rebeldes, mas a cabeça sempre fora sua parte mais tumultuada, mal partilhada pelas idéias colonialistas e sempre ambiente de conflitos, genocídios e minas terrestres disfarçadas de brinquedos e borboletas.Pensou um pouco na merda, em como as coisas eram merda. Imensa merda. Bochechou a água e a espuma com que escovou os dentes, conferiu a assimetria antisseptizada da arcada e a cor carnosa das gengivas, onde os dentes mordiam famintos. "Primeiro nasceram os dentes, depois nasceu o homem". Preferia ter esporrado na cueca a ter formulado uma frase dessas, mas foi o que veio ao olhar o reflexo da boca aberta.
Ainda de pijama, foi atrás de cigarros e café, encontrando a empregada na cozinha.
"Acordou agora?"
Encheu a xícara e saiu para o pátio, onde o sol e as árvores pareciam posar para algum impressionista.
Não sabia a resposta.
...
Nas árvores, os pardais. Gente matinal, urbana e onipresente que brota do cimento. Onde há cimento há pardais. Assim como os pombos, são os primeiros sinais de que o concreto está vindo. Vêm destruir os ciclos e os equilíbrios, anunciando às normalidades dos lugares o Apocalipse. Trombetazinhas sujas e finórias da aniquilação da pureza.
O primeiro cigarro do dia me tonteia e o primeiro café me desfibrila. Amanheço pegando no tranco, entre entropias químicas. Árvores e sol. E eu, acordado do não-sono. Nessun dorma, que assim seja.
Sou o primeiro homem do mundo a acordar assim e tenho a sensação de que um grande dom me foi dado.
Ilustração: Red Eye of Mars, Susanne Iles
Um comentário:
Your writing is hauntingly beautiful,
Susanne
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