Sou um rio que nasce amanhã.
A roda da vida em seu claustro de tempo, ininterrupta,
ancorada e livre,
corre através de minhas águas
e desemboca no por-do-sol.
Flechas e ventos me trespassam.
Líquido, trago sedimentos
e fertilidade
às margens do mundo,
com seus papiros
e crocodilos.
Sou um lapso, uma dobra,
um momento enjeitado.
Sou uma curva que nunca se fecha,
um instante brilhante e fugaz.
Carrego comigo um passado
pobre de concretudes,
mas de essência sólida,
como um projétil carrega consigo
as marcas do cano
por onde foi disparado.
Um acúmulo de fotos,
um novelo de paixões
em linhas arrebentadas.
Eu insisto dentro
de meu próprio contexto
pra conseguir o alívio,
minha apoteose de sábados,
meu delírio floral
aos domingos.
Não me deixo cair em tentações,
mas me livro do mal e das pestes,
que juntam homens e bichos
num mesmo lamaçal faminto.
Cavo pela terra meu caminho irrestrito,
meu mundo de profundidades
e corredeiras.
Há ingás em minhas margens
e eles são muito doces.
Me conhecer é questão
de mergulhos, banhos,
e ninfas brincam em meu leito
jogando água umas nas outras.
Um belo dia só existirá o passado
e o futuro desaparecerá
em uma fenda na terra.
Tragam-me suas virgens,
seus mortos,
seus primogênitos.
A todos engolirei
e nunca mais serão vistos
por ninguém.
Tragam-me músicas
e encham seus copos comigo.
Os rios têm uma regra
de hospitalidade a seguir:
a de nunca expulsar ninguém
que já esteja dentro.
Os únicos caminhos são a foz
e o fundo.
Me amar é um tipo de batismo