sexta-feira, 7 de maio de 2010

Narciso

"...And the things she put faith in are ripples just waving her by..."

(Gentle Giant)




Olha para o relógio e é assaltado daquele preenchimento que vem com as iminências, por ver que os ponteiros puxam o centro, um pra cima, o outro pra baixo.
Já de chapéu, desce a estreita escadaria do jornal e entra no fim da tarde. Acende um cigarro, debaixo da marquise. Um sanduíche humano atravessa a rua rápido, e vem se abrigar da chuva a seu lado. Tem cara de peruano ou qualquer desses pós-pré-colombianos que se cansaram de tocar flauta.
A chuva de verão, sol e gotas doces, traz a ele lembranças da infância, passada entre brejos e estradas de saibro, no interior. As brincadeiras e os banhos de calha e os esporros da mãe, quando voltava pra casa. Mais uma vez, ele está na cidade em que nasceu, chutando água das poças do pátio da igreja nos amigos, correndo de bicicleta na chuva, pintando nas costas um jato de lama. A chuva não está tão forte e tudo à frente é um mosaico brilhante, glorioso e colorido de imagens vindas do céu. Chuva boa, de um céu bom, trazendo natureza a ele, rara e distante, nesses dias.
Põe-se a atravessar a rua, sentindo-se mais leve, mais sutil à medida em que as roupas se molham. Os bigodes e as sobrancelhas descem-lhe do rosto, tinta derramada, vai perdendo todos os pelos do corpo. A ponta do nariz pinga nos lábios, que escorrem pelo peito. Afluem para lá também os olhos, em lágrimas borradas e os dentes deslizam e gotejam, feito velas acesas. Os dedos se fundem num só curso, em cada uma das mãos, como enfiadas em mangas de suéter compridas demais.
Alcança o outro lado, mas não transpõe o meio-fio, represo. Estende-se, abrangente, e pés chapinham no que era, há pouco, a barriga. Deslizam, por ele e com ele, papéis de bala, guimbas de cigarro, sonhos de menino e nenhum barco de papel. Vertigem.
A tarde se despede em brilho, do alto do bueiro.